O livro de título polêmico “O Caso dos Dez Negrinhos" que vendeu milhões de exemplares



"O Caso dos Dez Negrinhos" é o livro da renomada autora Agatha Christie que está entre os mais vendidos do mundo em todos os tempos com uma tiragem de mais de 100 milhões de cópias. O livro criou muita polêmica por causa do título escolhido pela autora. “Ten Little Niggers” ou em português “O Caso dos Dez Negrinhos“. No Brasil, a obra foi publicada primeiramente com o título “O Vingador Invisível”, mais tarde como “E Não Sobrou Nenhum”. A narrativa em terceira pessoa conta a história onde dez pessoas estranhas entre si são atraídas até uma ilha deserta situada na costa de Devon, um grande condado a sudeste da Inglaterra. Uma vez na ilha, os hóspedes vão sendo mortos e logo fica claro que um deles é o assassino.


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CAPITULO I  

No canto de um vagão de fumar de primeira classe, o Juiz Wargrave, recentemente aposentado, percorria com um olhar interessado as notícias políticas do Times. Depois de largar o jornal, olhou pela janela. O trem atravessava o condado de Somerset. Consultou o relógio: mais duas horas ainda. Pôs-se a recapitular mentalmente tudo que aparecera nos jornais sobre a Ilha do Negro. Primeiro, a sua compra por um milionário americano apaixonado pelo yachting, e a descrição da luxuosa e moderna vivenda que construíra nessa pequena ilha ao largo da costa de Devon. Mas, por infelicidade, a nova e terceira esposa do milionário norte-americano sofria de enjôo do mar, e tanto a casa como a própria ilha foram subseqüentemente postas à venda. Vários anúncios sensacionais apareceram na imprensa. Veio, então, a notícia positiva de que a venda fora efetuada a um Sr. Owen — e começaram os boatos dos cronistas sociais. A Ilha do Negro fora de fato comprada por Miss Gabrielle Turl, a estrela de Hollywood, que desejava passar alguns meses naquele retiro, livre de toda publicidade! Busy Bee insinuara delicadamente que a casa se destinava a ser uma residência da Realeza!?? Mr. Merryweather ouvira cochichar que ela fora comprada para uma lua-de-mel... O jovem Lorde L. rendera-se, afinal, às setas de Cupido! Jonas sabia de ciência certa que o adquirente fora o Almirantado, com vistas em realizar ali certas experiências extremamente sigilosas! Positivamente, a Ilha do Negro "era notícia". O Juiz Wargrave tirou uma carta do bolso. A letra era quase ilegível, mas aqui e ali se destacavam algumas palavras com inesperada clareza: "Querido Lawrence... tantos anos sem que eu nada soubesse de você... deve vir à Ilha do Negro... o lugar mais encantador do mundo... os velhos tempos... comunhão com a Natureza... lagartear ao sol... às 12:40, da estação de Paddington... nos encontraremos em Oakbridge..." E a remetente assinava, com um floreio de pena, "sua amiga de sempre, Constance Culmington". O Juiz Wargrave procurou relembrar com exatidão quando tinha visto Lady Constance Culmington pela última vez. Seria há uns sete... não, oito anos. Estava, então, de partida para a Itália, onde ia lagartear ao sol e viver em comunhão com a Natureza e os contadini. Mais tarde, soubera que ela havia embarcado para a Síria, onde ia aquecer-se a um sol ainda mais forte e viver em comunhão com a Natureza e os beduínos. Constance Culmington, refletiu o juiz, era precisamente o tipo de mulher capaz de comprar uma ilha para rodear-se de uma atmosfera de mistério! Sacudindo a cabeça numa plácida aprovação à sua própria lógica, o Juiz Wargrave deixou-a descair e ferrou no sono...
II
Num vagão de terceira classe, onde viajava em companhia de mais cinco passageiros, Vera Claythorne recostou a cabeça no espaldar do assento e cerrou os olhos. Que calor fazia naquele trem! Seria esplêndido ir para o mar! Na verdade, fora uma grande sorte conseguir semelhante emprego! Quando se procura trabalho no período de férias, isso quase sempre significa tomar conta de um enxame de crianças... Os empregos de secretária durante as férias são muito mais difíceis de obter. Nem sequer a agência havia dado grandes esperanças. E então chegara aquela carta: "Recebi da Agência de Empregadas Especializadas a indicação de seu nome, juntamente com as respectivas referências, das quais deduzo que a senhorita é pessoalmente conhecida dessa entidade. Terei prazer em pagar-lhe o salário que pede e espero que comece a trabalhar em 8 de agosto. O trem a tomar é o das 12:40, em Paddington. Será recebida na estação de Oakbridge. Incluo cinco notas de uma libra para as despesas. "Sinceramente, Una Nancy Owen."
E no alto vinha o endereço impresso: Ilha do Negro, Sticklehaven, Devon... Ilha do Negro! Ultimamente não se falava de outra coisa nos jornais. Toda sorte de insinuações e de boatos interessantes, se bem que provavelmente mentirosos na maioria. Mas era verdade que a casa fora construída por um milionário, e dizia-se que representava a última palavra em matéria de luxo. Fatigada por um atarefadíssimo trimestre escolar, Vera pensava consigo: "Ser mestra de esportes num estabelecimento de terceira ordem é uma coisa miserável... Se ao menos pudesse conseguir lugar nalguma escola decente!" E em seguida, sentindo um frio no coração, pensou: "Mas a verdade é que tive sorte em consegui-lo. Afinal, ninguém gosta de dar emprego a quem andou às voltas com a justiça, mesmo que o Coroner me tenha isentado de toda culpa!" Lembrou-se de que ele a tinha até cumprimentado pela sua coragem e presença de espírito. Para um inquérito judicial, não poderia ter-se saído melhor. E a Sra. Hamilton fora para ela a bondade em pessoa. Somente Hugo... mas não queria pensar e não pensaria em Hugo! De súbito, a despeito do calor que fazia no vagão, estremeceu arrepiada e desejou que não estivesse viajando para o mar. Uma cena configurou-se nitidamente no seu espírito. A cabeça de Cyril erguendo-se e tornando a mergulhar nas ondas em direção ao rochedo... para cima e para baixo, para cima e para baixo... E ela própria a nadar atrás dele com braçadas suaves e experimentadas... abrindo caminho na água, mas sabendo perfeitamente que não chegaria a tempo... O mar... o seu azul profundo e tépido... as manhãs passadas na areia... Hugo... Hugo, que dissera amá-la... Não devia pensar em Hugo...
Abriu os olhos e franziu a testa olhando para o homem sentado à sua frente. Um homem alto. de rosto trigueiro, olhos claros e muito unidos, boca arrogante, quase cruel. "Aposto que ele esteve em lugares interessantes do mundo e que já viu coisas muito interessantes...", pensou Vera consigo.
III
Philip Lombard, avaliando num rápido relance dos seus olhos vivos a moça que tinha na frente, pensava: "Bem atraente... Um pouco aprofessorada, talvez." Senhora de seus atos, imaginava ele, dessas que sabem dirigir-se tanto na guerra como no amor. Bem gostaria de tentar alguma coisa com ela... Franziu o sobrolho. Não, fora com todas essas coisas. Ia a negócios. Devia concentrar-se na sua ocupação. Qual seria precisamente essa ocupação'' cismava Lombard. Aquele judeuzinho tinha sido misterioso como o diabo. — É pegar ou largar, Cap. Lombard. E ele respondera pensativamente — Cem guinéus, nem? Pronunciara estas palavras com displicência, como se cem guinéus nada significassem para ele Cem guinéus, quando estava na última lona! Desconfiava, porém, que o judeuzinho não se deixara enganar. Isso é o que há de pior quando se trata com judeus... Impossível enganá-los em questões de dinheiro: eles sempre sabem.' No mesmo tom desprendido, Lombard acrescentara: — Não me pode dar maiores informações? O Sr. Isaac Morris sacudira, muito positivo, a cabecinha calva. — Não, Cap. Lombard, isto é tudo que tenho para lhe dizer. O meu cliente conhece a sua reputação como homem prestante em situações perigosas. Estou autorizado a pagar-lhe cem guinéus, em troca dos quais deverá ir a Sticklehaven. no Devon. A estação mais próxima é Oakbridge. Lá estarão à sua espera para levá-lo de automóvel a Sticklehaven, onde uma lancha o transportará à Ilha do Negro. Ali o senhor se colocará à disposição do meu cliente. — Por quanto tempo? — indagara abruptamente Lombard. — Uma semana, no máximo.   v Cofiando o pequeno bigode, o Cap. Lombard observou: — O senhor sabe que eu não posso aceitar nada... ilegal? Dardejara um olhar penetrante ao outro enquanto falava. Nos espessos lábios semíticos do Sr. Morris esboçou-se um ligeiro sorriso ao responder gravemente: — Se algo de ilegal lhe for proposto, o senhor naturalmente terá plena liberdade de recusar.
Diabos levem aquele tipinho oleoso! Pois ele não sorrira? Era como se soubesse que no passado de Lombard a legalidade nem sempre fora uma cláusula sine qua non... Os lábios do próprio Lombard entreabriram-se num sorriso ao relembrar a cena. O fato é que, uma ou duas vezes, fora um pouco afoito demais. Mas sempre conseguia safar-se! Na realidade, os seus escrúpulos não iam muito longe... Não, os seus escrúpulos não iam muito longe. Previa que ia divertir-se bastante na Ilha do Negro...
IV
Num carro para não-fumantes Emily Brent ia rigidamente sentada, como era seu costume. Solteirona de sessenta e cinco anos, não aprovava as atitudes relaxadas. Seu pai, um coronel da velha escola, fora muito exigente nesse ponto. A geração atual era de uma negligência indecorosa... em suas posturas e em tudo mais... Envolta numa aura de retidão e de princípios irredutíveis, Miss Brent viajava no apinhado vagão de terceira classe e triunfava sobre o desconforto e o calor. Todos, hoje em dia, eram tão cheios de dengues! Queriam injeções para arrancar um dente... tomavam drogas se não podiam dormir... queriam cadeiras fofas e almofadas, e as moças vestiam-se de qualquer jeito e, no verão, estiravam-se seminuas nas praias. Os lábios de Miss Brent cerraram-se com força. Gostaria de dar uma lição a certa gente. Lembrou-se do veraneio anterior. Este ano, porém, seria bem diferente. A Ilha do Negro... Tornou a ler mentalmente a carta que já havia lido tantas vezes: "Prezada Miss Brent: "Espero que se recorde de mim. Estivemos juntas na pensão de Belhaven, há alguns anos, em agosto, e parecíamos ter muita coisa em comum. "Estou iniciando, numa ilha da costa de Devon, uma casa de hóspedes de minha propriedade. Creio que há realmente campo para uma casa que forneça alimentação simples e sadia a gente boa e morigerada, à moda antiga. Nada de nudez nem de gramofones até alta noite. Dar-me-á muito prazer se consentir em passar seu veraneio na Ilha do Negro — inteiramente grátis — como hóspede minha. Serve-lhe nos princípios de agosto, talvez dia 8? "Muito devotamente, U.N.O...."
Como era mesmo o nome? Dava algum trabalho decifrar a assinatura. "Muita gente assina o nome de modo bem ilegível", refletiu Emily Brent com impaciência.
Procurou lembrar-se de suas companheiras de veraneio em Belhaven. Estivera lá em dois verões. Havia aquela encantadora senhora de meia-idade, Miss... Miss... ora, como se chamava ela? Era filha de um cônego anglicano. E também lá estivera uma Sra. Olten... Ormen... Não, era certamente Oliver! Sim, Oliver. A Ilha do Negro. Tinham surgido histórias nos jornais sobre a Ilha do Negro... Falava-se numa artista de cinema... ou seria um milionário norte-americano? É certo que muitas vezes esses lugares ficam deveras baratos. Ilhas não servem para toda gente. Acham a idéia muito romântica, mas quando ali vão morar e percebem as desvantagens, dão-se por muito satisfeitas em desfazer-se delas. "Seja como for, terei um veraneio gratuito", refletiu Emily Brent. Com a sua renda tão reduzida e tantos dividendos atrasados, isso era, em verdade, uma coisa a ser tomada em consideração. Se ao menos pudesse lembrar um pouco mais sobre a Sra. (ou seria Srta.) Oliver!
V
O Gen. Macarthur olhou pela janela do vagão. Estavam chegando em Exeter, onde teria de fazer baldeação. Arre com esses trens lerdos de ramal! Afinal, em linha reta essa tal Ilha do Negro ficava logo ali adiante... Não fazia uma idéia bem clara de quem fosse o tal Owen. Um amigo de Spoof Leggard e de Johnnie Dyer, segundo parecia. "... Também virão um ou dois de seus velhos camaradas... gostaria de conversar sobre os bons tempos de outrora." A verdade é que uma charla sobre os velhos tempos lhe daria grande prazer. Ultimamente andava desconfiado de que os amigos o evitavam. Tudo por causa daquele infernal boato! Era duro, por Deus... Uma coisa que acontecera quase trinta anos atrás! Armitage devia ter tagarelado. Maldito sujeitinho! Que saberia ele, enfim? Bem, não valia a pena remoer essas desconfianças! Às vezes a gente imagina coisas... imagina que um camarada nos olha de maneira esquisita. Essa Ilha do Negro, por exemplo, gostaria de vê-la. Muito mexerico a respeito dela. Talvez houvesse algo de verdade no boato de que fora adquirida pelo Almirantado, ou pelo Ministério da Guerra, ou pela Força Aérea... Quem construíra a casa fora o jovem Elmer Robson, o milionário americano. Dizia-se que gastara milhares de libras. Todo o luxo do mundo... Exeter! Uma hora de espera! E ele não queria esperar. Queria tocar para diante. VI
O Dr. Armstrong atravessava a Planície de Salsbury no seu carro. Sentia-se bastante cansado. O sucesso tem seus inconvenientes. Tempo houvera em que ele ficava sentado no seu consultório de Harley Street, corretamente trajado, cercado dos mais modernos aparelhos e do mais luxuoso mobiliário, esperando através dos dias vazios pela vitória ou pelo fracasso da sua aventura financeira...
Pois bem, tinha vencido! Tivera sorte. Sorte e competência, está visto. Era um homem que entendia da sua profissão... mas isso não bastava para vencer. Era preciso também ter sorte. E ele a tivera! Um diagnóstico bem feito, duas ou três clientes agradecidas — mulheres com dinheiro e posição — e a fama começara. "Você deve consultar Armstrong... Bem moço ainda, mas simplesmente brilhante!... Pamela andou nas mãos de tudo que era médico durante anos, mas ele acertou na primeira consulta!" E a bola tinha começado a rolar... , Finalmente famoso, o Dr. Armstrong tinha seus dias cheios. Quase não lhe sobravam lazeres. E assim, nessa manhã de agosto, sentia-se satisfeito em sair de Londres para ir passar alguns dias numa ilha ao largo da costa de Devon. Não que se tratasse propriamente de um veraneio. A carta que recebera era escrita em termos um tanto vagos, mas nada havia de vago no cheque incluso. Que magnificência! Esses Owen deviam nadar em dinheiro. Parecia haver uma pequena dificuldade: o marido, aflito com a saúde da esposa, desejava um exame médico sem que esta se alarmasse. Ela não queria saber de doutores. Os seus nervos Nervos! O médico arqueou as sobrancelhas. Essas mulheres com os seus nervos! Bem, afinal era isso que fazia andar o negócio. Metade das mulheres que o procuravam não sofriam de coisa alguma, mas não lhe ficariam agradecidas se lhes dissesse! E, em geral, sempre se podia encontrar alguma coisa. — Uma ligeira disfunção do (uma palavra grega bem comprida). Nada de sério, mas precisa ser controlado. Um tratamento simples. Em grande parte, a medicina era simples curandeirismo. Mas ele tinha jeito; sabia inspirar fé e esperança. Que sorte ter podido recuperar-se a tempo depois daquela história há dez... não, quinze anos! Estava se deixando arrastar, mas o choque o fizera cair em si. Abandonara completamente a bebida. Mas, caramba, por pouco não dera com os burros n'água... Com uma buzinada ensurdecedora, um enorme Dalmain Super-Sports passou por ele a 130 km por hora. O Dr. Armstrong quase foi parar na valeta. Um desses jovens cretinos com a mania de correr. Como os detestava! Escapara por pouco. Maldito imbecil!
VII
Tony Marston, chispando na direção de Mere, dizia com os seus botões: — Incrível a quantidade de carros que se arrastam pelas estradas! Sempre há alguma coisa a se atravessar no caminho da gente. E teimam em andar no meio da pista! Já nem se pode dirigir na Inglaterra... Não é como na França; lá, sim, é que vale a pena! Parava para tomar alguma coisa ou tocava para diante? Tinha tempo de sobra! Apenas umas cento e poucas milhas ainda que andar. Tomaria gim com ginger beer. Um calor de rachar!
A tal casa na ilha devia ser bastante divertida... se o bom tempo durasse. Quem seriam esses Owen? Novos-ricos, com certeza. Badger tinha um faro para essa espécie de gente! Está claro que precisava fazer isso, pobre diabo, pois era um pronto... Contanto que servissem boas bebidas... Nunca se pode prever, tratando-se dessa gente que ganhou o seu dinheiro e não nasceu com ele. Pena que não fosse verdade aquela história de Gabrielle Turl ter comprado a Ilha do Negro. Gostaria de entrar na roda da estrela de cinema. Enfim, supunha que houvesse lá algumas garotas... Ao sair do hotel, espreguiçou-se, bocejou, olhou para o céu azul e saltou no Dalmain. Seu metro e oitenta de altura, seu corpo de atleta, seu cabelo crespo, rosto bronzeado e olhos de um azul intenso valeram-lhe um olhar admirativo de várias moças que se encontravam nas imediações. Embreou e partiu roncando pela rua estreita. Alguns velhos e meninos de recados saltaram para a segurança da calçada. Estes últimos acompanharam o Dalmain com um olhar de admiração. Anthony Marston prosseguiu na sua marcha triunfal.
VIII
O Sr. Blore viajava no trem ordinário de Plymouth. Havia apenas uma outra pessoa no seu vagão, um idoso cavalheiro de profissão marítima, com olhos sonolentos. Havia adormecido naquele instante. O Sr. Blore tomava apontamentos num caderninho. — Aí estão todos — murmurou de si para si. — Emily Brent, Vera Claythorne, Dr. Armstrong, Anthony Marston, o velho Juiz Wargrave, Philip Lombard, Gen. Macarthur, e um casal de criados, os Rogers. Fechou o caderno de notas e tornou a guardá-lo no bolso. Lançou um olhar ao canto onde o outro dormitava. — Tomou um copo demais — diagnosticou o Sr. Blore com precisão. Tornou a repassar tudo na mente, com meticuloso cuidado. — O trabalho deve ser fácil — ruminou ele. — Não vejo nenhuma possibilidade de cometer erros. Espero que minha aparência seja aceitável. Levantou-se e examinou-se ansiosamente no espelho. O rosto que ali viu refletido possuía um bigode que lhe dava um certo ar militar. Um rosto inexpressivo, de olhos cinzentos bastante chegados um ao outro. — Podia passar por um major — disse o Sr. Blore. — Não, ia esquecendo. Lá estará aquele velho general. Ele me descobriria em seguida... A África do Sul: essa é a linha a adotar! De toda essa gente, ninguém tem nada que ver com a África do Sul, e eu estou bem informado graças àquele folheto de viagem que li no outro dia. Felizmente, havia coloniais de todos os tipos e espécies. Como um sul-africano de recursos, o Sr. Blore achava que podia freqüentar qualquer sociedade sem que
ninguém desconfiasse. Ilha do Negro. Lembrava-se de tê-la visitado em menino... Um rochedo malcheiroso, coberto de gaivotas, a cerca de uma milha da costa. Recebera esse nome por causa da semelhança com uma cabeça de homem — um homem de lábios negróides. Esquisita idéia construir uma casa ali! Era horrível com mau tempo! Mas os milionários têm desses caprichos! Lá no seu canto, o velho acordou e disse: — Nunca se pode contar com o mar, nunca mesmo! O Sr. Blore respondeu com voz macia: — É verdade. Nunca se pode. O velho soluçou duas vezes e disse em tom queixoso: — Aí vem tormenta. O Sr. Blore interpôs: — Não, não, companheiro, está fazendo um lindo dia. O velho redargüiu, furioso: — Aí vem uma tormenta. Sinto-lhe o cheiro. — Talvez tenha razão — assentiu o Sr. Blore pacificamente. O trem parou numa estação e o velho ergueu-se a custo. É aqui que eu desembarco. Fez força para abrir a janela. O Sr. Blore ajudou-o. Ao sair, o velho parou na porta e alçou solenemente a mão, piscando os olhos sonolentos. —Vigiai e orai — disse. — Vigiai e orai. O Dia do Juízo está próximo. Desabou pelos degraus do vagão abaixo. Em posição supina na plataforma, ergueu os olhos para o Sr. Blore e proclamou com imensa dignidade: — Estou falando para o senhor, moço. O Dia do Juízo está muito próximo. Ficando a sós, o Sr. Blore disse consigo: — Ele está mais próximo do Dia do Juízo do que eu! Mas nisso, consoante veio a suceder, enganava-se...

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