A Travessia
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A Travessia
Antony Spencer é um multimilionário egocêntrico que tem sua
vida totalmente transformada após sofrer um derrame cerebral e passar por uma
experiência de coma.
Em um mundo surreal, Antony Spencer se encontra
com um homem que se diz Jesus e uma senhora idosa que é o espírito santo.
Antony pergunta a Jesus por que aquele lugar tem aquele aspecto de abandono e
descuido. Afinal, se ele estava em coma, ali deveria ser um lugar lindo e
agradável de estar. Jesus, então, o explica que aquele mundo estranho e de
aspecto sofrível reflete toda a mágoa e tristeza da sua própria vida terrena. Abismado
pela triste descoberta, Antony implora por uma segunda chance. Jesus ouve seu
pedido e lhe dá a chance de voltar a terra. Lá Antony tem a chance de viver uma
extraordinária experiência com várias pessoas, enxergando através dos seus
olhos, conhecendo suas visões do mundo, suas esperanças, seus medos e seus
desafios. Para se redimir, Antony deverá usar o poder de cura que lhe foi
concedido. Mas ele terá a chance de usar este poder apenas uma vez e para uma
só pessoa.
Literatura Estrangeira
Romance
Autor: Willian P. Young
Editora: Arqueiro
Acabamento: Brochura
Número de páginas: 240
Acabamento: Brochura
Número de páginas: 240
Leia um trecho do livro
O homem mais digno de pena é aquele que transforma seus sonhos em prata e ouro.
1
Uma tempestade se aproxima
O homem mais digno de pena é aquele que transforma seus sonhos em prata e ouro.
Khalil Gibran
Há anos em que o inverno em Portland, no estado do Oregon, é
muito rigoroso. Em sua violenta batalha contra a chegada da primavera, ele
ataca com tempestades de granizo e neve, reivindicando algum direito de
continuar sendo o rei das estações – no fim das contas, uma tentativa inútil. Este
ano, no entanto, não foi assim. O inverno simplesmente se retirou como uma
mulher derrotada, partindo de cabeça baixa com suas roupas brancas e marrons
sujas e esfarrapadas, sem uma única palavra de protesto nem promessa de
retorno. Mal dava para notar a diferença entre sua presença e sua ausência.
Para Anthony
Spencer, não importava. O inverno era uma chateação e a primavera não ficava
atrás. Se pudesse, removeria as duas estações do calendário, juntamente com a
parte úmida e chuvosa do outono. Um ano de cinco meses seria o ideal, sem
dúvida melhor do que aqueles longos períodos de incerteza. Todo final de
primavera, Tony se questionava por que permanecia no Noroeste do país, mas a cada
ano que passava ele se via fazendo a mesma pergunta. Talvez a monotonia
decepcionante tivesse lá seus confortos. A ideia de uma verdadeira mudança era
desanimadora. Quanto mais arraigado em seus hábitos seguros, menos inclinado
ele ficava a crer que qualquer outra coisa valesse o esforço, ainda que
possível. Por mais angustiante que a velha rotina fosse às vezes, ao menos ela
era previsível.
Ele se recostou
na cadeira e ergueu os olhos da mesa entulhada de papéis para a tela do
computador. Bastava pressionar uma tecla para ter acesso ao sistema de
monitoramento de suas propriedades: o apartamento no prédio bem ao lado de onde
estava; seu escritório principal situado estrategicamente no centro de
Portland, no meio de um arranha-céu comercial de médio porte; sua casa de praia
e seu casarão em West Hills. Ficou observando a tela enquanto tamborilava incansavelmente
em seu joelho com o indicador. O silêncio era total, como se o mundo estivesse
prendendo a respiração. São muitas as maneiras de se estar sozinho.
Embora as pessoas
que se relacionavam com Tony em ambientes sociais ou profissionais pudessem
pensar o contrário, ele não era um homem alegre. Era, sem dúvida, determinado,
e estava sempre em busca da próxima oportunidade. Isso muitas vezes exigia uma
atitude extrovertida e sociável, sorriso largo, contato visual e aperto de mão firme,
não por causa de uma admiração genuína, mas porque todos potencialmente tinham
informações que poderiam ser valiosas para o sucesso de seus empreendimentos.
Suas perguntas constantes faziam pressupor um interesse sincero, o que dava a
seus interlocutores a impressão de que eram importantes, embora também
transmitissem uma sensação de vazio. Famoso por suas iniciativas filantrópicas,
Tony entendia a compaixão como um meio de alcançar objetivos mais palpáveis. O
altruísmo tornava as pessoas muito mais fáceis de manipular. Depois de algumas
tentativas hesitantes, ele havia concluído que amizades eram mau investimento,
pois traziam lucros baixíssimos. O verdadeiro altruísmo era um luxo para o qual
ele não tinha tempo nem energia.
Em vez disso,
baseou seu sucesso na administração e na construção de imóveis, empreendimentos
comerciais diversificados e numa carteira de investimentos em expansão, meios
em que era respeitado e temido como um empresário agressivo e um mestre das negociações.
Para Tony, a felicidade era um sentimento tolo e efêmero, uma brisa passageira
se comparada ao perfume de um negócio em potencial e ao gosto viciante da
vitória. Como um velho sovina, ele adorava sugar os últimos resquícios de
dignidade daqueles ao seu redor, especialmente dos funcionários que suavam a
camisa mais por medo do que por respeito. Como um homem desses poderia merecer
amor ou compaixão?
Quando sorria,
Tony quase podia passar por um homem bonito. A genética o abençoara com mais de
1,80 m de altura e um cabelo que, mesmo aos 40 e tantos anos, não dava sinais de
rarear, embora já estivesse ficando grisalho nas têmporas. Obviamente anglo-saxão,
ainda assim algo de mestiço e delicado suavizava seus traços, sobretudo naqueles
raros momentos em que abandonava sua habitual postura séria, de homem de
negócios, e se deixava levar por um riso incontido.
Para os padrões
usuais, ele era rico, bem-sucedido e muito bom partido. Um tanto mulherengo,
exercitava-se o suficiente para manter a forma, ostentando apenas uma barriga
pouco proeminente que podia ser encolhida quando necessário. E as mulheres iam
e vinham, as mais espertas pulando fora antes que as outras, e todas elas se
sentindo péssimas depois da experiência.
Ele havia se
casado duas vezes com a mesma mulher. A primeira união, quando ambos tinham
apenas 20 e poucos anos, tinha gerado um casal de filhos. A filha, uma jovem
revoltada, vivia do outro lado do país, perto da mãe. O garoto era outra
história. O casamento terminara em divórcio por incompatibilidade de gênios, um
exemplo clássico de indiferença e falta de atenção. Em poucos anos, Tony tinha conseguido
deixar em frangalhos a autoestima de Loree.
O problema foi
que, da primeira vez, ela saíra de casa com a cabeça erguida, o que não poderia
significar uma vitória de verdade. Então, depois de passar os dois anos
seguintes tentando reconquistá-la, Tony organizou uma magnífica cerimônia de
segundo casamento, para duas semanas depois voltar a lhe apresentar os papéis
de divórcio. Há quem diga que os papéis tinham sido preparados antes mesmo de
os dois selarem de novo os votos em cartório. Mas, dessa vez, quando ela o
atacou com toda a fúria de uma mulher desprezada, ele a esmagou financeira,
legal e psicologicamente. Isso, sim, poderia ter sido considerado uma vitória.
Tudo não passou de um jogo cruel, mas apenas para ele.
O preço que Tony
pagou foi perder a filha no processo, algo que voltava a atormentá-lo sempre
que ele bebia além da conta. Mas era apenas um pequeno fantasma que ele
rapidamente enterrava ocupando-se em trabalhar e vencer. Só o filho deles já
seria motivo suficiente para afogar as mágoas no uísque, um remédio sem prescrição
que cegava as lâminas cortantes da memória e do arrependimento e amenizava as
terríveis enxaquecas que, vez por outra, teimavam em lhe fazer companhia.
Se a liberdade é
um processo gradativo, o mesmo vale para o mal. Com o tempo, pequenas
deturpações da verdade e justificativas aparentemente sem importância erguem um
edifício inesperado. Isso se aplica a um Hitler, a um Stalin ou a pessoas
comuns. A casa da alma é magnífica, porém frágil. Qualquer traição ou mentira
que se agarre a suas paredes ou seus alicerces pode fazê-la crescer em direções
inimagináveis.
O mistério de cada alma humana, até mesmo da
de Anthony Spencer, é profundo. Seu nascimento desencadeou uma explosão de vida,
um universo interno em expansão, formando seu próprio sistema solar e galáxias,
com uma simetria e uma elegância inconcebíveis. Em algum momento do caminho, no
entanto, a dor e a frustração chegaram com força esmagadora, abalando a
delicada ordem desse arranjo complexo, que começou a desmoronar sob seu próprio
peso. Essa deterioração veio à tona na forma de um medo auto protetor, de uma
ambição egoísta e do endurecimento de qualquer tipo de ternura. O que antes era
um órgão vivo, um coração de carne, se transformou em pedra; uma pequena rocha
que vivia no casulo oco daquele corpo. Antes, a aparência externa era um
reflexo do encanto e do esplendor internos. Agora, não passava de uma fachada
em busca de um coração que devia encontrar seu caminho sem auxílio algum, um
astro moribundo, faminto dentro de seu próprio vazio.
A dor, a
frustração e, por fim, o abandono são feitores cruéis, mas juntos eles se
tornam uma desolação quase insuportável. Esses sentimentos tornaram-se um
arsenal na existência de Tony, fazendo-o esconder facas dentro das palavras,
erguer muros para proteger-se de qualquer aproximação, e aprisionando-o numa
ilusão de segurança, quando na verdade estava isolado e solitário. Restava
pouca música verdadeira na vida de Tony; apenas resquícios de criatividade
quase inaudíveis. A trilha sonora de sua sobrevivência não passava de música de
elevador, melodias insossas que acompanhavam o ritmo da subida.
As pessoas que o
reconheciam na rua meneavam a cabeça para cumprimentá-lo, os mais sensíveis
cuspindo com desdém na calçada, depois que ele passava. Mas muitos se sentiam
atraídos por ele; puxa-sacos e bajuladores que aguardavam suas próximas ordens,
loucos para conquistar uma migalha de
aprovação ou do que imaginavam ser afeto. Sempre existem aqueles que aproveitam
a onda de um suposto sucesso por necessidade de garantir sua própria
importância, identidade e intenções. A percepção faz a realidade, mesmo que
essa percepção seja uma mentira.
Tony possuía uma
mansão em West Hills e, a não ser que tivesse organizado algum evento em
benefício próprio, mantinha apenas uma pequena parte dela aquecida. Embora
raramente ficasse lá, gostava de pensar na propriedade como um monumento à
derrota de sua esposa. Loree tinha ficado com a casa como parte do primeiro
acordo de divórcio dos dois, mas precisou vendê-la para pagar as exorbitantes despesas
legais referentes ao segundo. Com a ajuda de alguns comparsas, ele a comprou de
volta por uma mixaria, chegando a chamar a polícia para retirar sua perplexa
esposa da propriedade no dia em que foi sacramentada a venda.
Ele tornou a se
inclinar para a frente, desligou o computador e, apanhando seu uísque, girou a
cadeira para encarar uma lista de nomes que tinha escrito num quadro branco.
Levantou-se, apagou quatro nomes e acrescentou um. Então deixou-se cair na
cadeira, seus dedos tamborilando no tampo da mesa. Hoje, seu humor estava pior do
que o normal. Compromissos profissionais haviam exigido que ele participasse em
Boston de uma conferência que não lhe despertava o menor interesse. Em seguida,
uma pequena crise no setor de recursos humanos fez com que precisasse voltar um
dia antes do esperado. Por mais aborrecido que fosse ter que lidar com uma
situação que poderia muito bem ser resolvida por seus subordinados, ele ficou
grato por ter uma desculpa para abandonar os seminários quase insuportáveis e voltar
à ligeiramente tolerável rotina que controlava melhor.
Mas algo havia
mudado. O que antes era uma leve inquietação acabou se transformando em uma voz
consciente. Fazia algumas semanas que Tony tinha a sensação incômoda de estar
sendo seguido. A princípio, achou que fosse apenas efeito do estresse, delírios
de uma mente sobrecarregada de trabalho. Mas, uma vez plantada, a ideia encontrara
solo fértil – e o que começou como uma semente facilmente descartada por uma
reflexão mais atenta criou raízes que logo se expressaram na forma de uma
hipervigilância nervosa, que sugava ainda mais energia de uma mente em
constante estado de alerta.
Ele começou a
notar detalhes em acontecimentos sem importância, que isoladamente não o fariam
sequer pensar duas vezes. Mas, juntos, foram se tornando um coro de alerta em
sua consciência. A caminhonete que às vezes parecia segui-lo no percurso para o
escritório, o frentista que por alguns minutos esquecia de lhe devolver seu
cartão de crédito, a empresa de alarmes que o notificou das três quedas de
energia que pareciam ter afetado apenas sua casa, ao passo que as de seus
vizinhos continuavam incólumes, cada apagão durando exatamente 22 minutos,
durante três dias consecutivos. Tony começou a prestar mais atenção em
discrepâncias triviais e até na maneira como as outras pessoas olhavam para ele
– o barman do Stumptown Coffee, o segurança da entrada principal, até os funcionários
que ocupavam as mesas no trabalho. Tony notava como essas pessoas desviavam o
olhar quando ele se virava na direção delas, mudando rapidamente sua linguagem
corporal para fingir que estavam ocupadas ou cuidando de outro assunto.
Havia uma
semelhança inquietante nas reações dessas diferentes pessoas, como se fosse um
complô. Como se partilhassem um segredo ao qual ele não podia ter acesso.
Quanto mais observava, mais clara se tornava essa impressão, o que o fazia
ficar ainda mais vigilante. Sempre tinha sido um pouco paranoico, mas agora
considerava constantemente a hipótese de uma conspiração, o que o deixava
agitado e nervoso.
Tony mantinha um
escritório particular completo, com quarto, cozinha e banheiro, numa localidade
que até mesmo seu advogado pessoal desconhecia. Era seu refúgio às margens do
rio, nos arredores da Macadam Avenue, para as ocasiões em que queria
simplesmente desaparecer por algumas horas ou passar a noite incomunicável.
A casa maior que
continha esse pequeno esconderijo também era sua, mas havia anos que o título
de propriedade tinha sido transferido para uma empresa-fantasma. Nessa mesma
época, ele reformara parte do porão, equipando-o com a mais avançada tecnologia
de segurança e vigilância. Além dos empreiteiros originais, que tinham sido
contratados pessoalmente, ninguém jamais vira aquela parte da casa. Sua
existência não constava nem mesmo da planta da propriedade, graças a subornos
aos construtores e generosas doações aos manda chuvas do governo municipal.
Quando a senha correta era digitada no que parecia o teclado de uma caixa
telefônica enferrujada nos fundos de um quarto de zelador sem uso, uma parede
deslizava para o lado, revelando uma porta corta-fogo de aço e um moderno sistema
de controle de entrada, com câmera e teclado.
O lugar era
alimentado por uma rede de energia e internet separada do restante do complexo.
Além disso, se seu software de monitoramento de segurança detectasse qualquer
tentativa de rastrear o local, desligaria e bloquearia o sistema até que ele
fosse reiniciado por meio de uma nova senha gerada automaticamente. Isso só
poderia ser feito de dois locais: de sua mesa no escritório do centro da
cidade, ou de dentro da própria câmara secreta. Tony tinha o hábito de, antes
de entrar, desligar seu celular e remover a bateria. Uma linha fixa não cadastrada
na lista telefônica podia ser ativada se houvesse necessidade.
O ambiente era
despojado. A mobília e a decoração eram simples, quase espartanas. Ninguém
jamais veria aquele lugar, de modo que tudo naqueles cômodos significava algo
para ele. Livros que cobriam as paredes, muitos dos quais ele nunca havia
chegado a abrir, tinham pertencido ao seu pai. Outros, em especial os
clássicos, sua mãe costumava ler para ele e seu irmão. As obras de C. S. Lewis
e George MacDonald estavam entre as mais importantes, suas favoritas quando criança.
Uma das primeiras edições de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde,
encontrava-se em local de destaque, acessível apenas a seus olhos. Em uma das
extremidades da estante, havia diversos livros de negócios, lidos com atenção e
marcados do começo ao fim, um verdadeiro arsenal de mentores. Havia também
gravuras de Escher e Doolittle penduradas aleatoriamente nas paredes, e uma
vitrola em um dos cantos. Ele mantinha uma coleção de discos de vinil cujos arranhões
eram como lembranças reconfortantes de tempos passados.
Ali também ele
guardava seus objetos e documentos mais importantes: escrituras, títulos e,
acima de tudo, seu testamento oficial. Tony o revisava e modificava com
frequência, acrescentado ou eliminando pessoas à medida que elas passavam por
sua vida e o irritavam ou agradavam com suas atitudes. Imaginava o impacto que
teria nos interessados em sua riqueza receber ou não alguma herança quando ele partisse
desta para melhor.
Seu advogado
pessoal, ao contrário de seu consultor jurídico geral, possuía a chave de um
cofre na agência principal do banco Wells Fargo, no centro da cidade. Esse
cofre só poderia ser aberto de posse do seu atestado de óbito. Dentro, havia
informações que revelavam a localização do apartamento e escritório
particulares, de como ter acesso aos mesmos e onde encontrar as senhas para
abrir o cofre oculto, enterrado na fundação da casa. Caso alguém tentasse
chegar ao cofre sem um atestado de óbito, o banco deveria notificar Tony imediatamente,
e, como já alertara seu advogado, se isso um dia acontecesse, o vínculo
profissional entre eles seria interrompido na mesma hora, assim como os
generosos honorários pagos, sem falta, todo primeiro dia útil de cada mês.
Tony mantinha uma
cópia mais antiga de seu testamento no cofre do escritório. Certos sócios e
colegas tinham acesso a esse documento por motivos profissionais, e ele
esperava secretamente que a curiosidade vencesse alguns deles, imaginando o
prazer que sentiriam ao conhecer seu conteúdo, seguido da tremenda decepção ao
ler seu testamento de verdade.
Todos sabiam que
Tony era dono e administrador da propriedade contígua ao prédio onde estava seu
esconderijo. Tratava-se de uma construção semelhante, com vitrines de lojas no
térreo e apartamentos residenciais nos andares de cima. Os dois prédios
compartilhavam
um estacionamento subterrâneo, com câmeras posicionadas aparentemente
para cobrir toda a área, mas que na verdade não alcançavam um corredor que se
podia atravessar despercebido. Assim,Tony era capaz de chegar ao seu refúgio
secreto sem ser notado.
Para justificar
sua presença constante naquelas bandas da cidade,ele comprou um apartamento de
dois quartos no primeiro piso do prédio ao lado do seu escritório secreto. Era
todo equipado e bem dividido, uma fachada perfeita, e ele passava mais noites
ali do que em sua mansão em West Hills ou em sua casa de praia perto de Depoe Bay.
Tony havia
cronometrado o tempo que levava para andar de um apartamento ao outro através da
garagem, e sabia que poderia estar isolado em seu santuário especial em menos de
três minutos, observando a área útil de seu apartamento através de uma
video transmissão gravável. A extensiva aparelhagem eletrônica era mais para
fins de proteção do que de vigilância. Não havia colocado propositalmente câmeras
nos quartos nem nos banheiros, sabendo que outras pessoas ocupariam o imóvel
quando ele não o estivesse usando. Tony tinha várias características
desagradáveis, mas o voyeurismo não era uma delas.
Qualquer um que
reconhecesse seu carro na garagem apenas suporia (geralmente de forma correta)
que ele tinha vindo passar anoite em seu apartamento. Tony se tornara uma
figura rotineira ali, e sua presença ou ausência não chamava atenção, tal como
ele queria. Mesmo assim, em seu estado de alta ansiedade, ele vinha sendo mais cauteloso
do que o normal. Mudava ligeiramente seus hábitos para descobrir se alguém o
estava seguindo, mas não a ponto de levantar suspeitas.
Tony não podia
imaginar o motivo pelo qual alguém iria segui-lo. Ele cortara quase todos os
vínculos bruscamente, e talvez fosse essa a raiz do problema. Só pode ser por
dinheiro, ele supunha. Não era sempre assim? Talvez sua ex-mulher? Talvez seus
sócios ou um com corrente estivessem preparando um golpe para tomar sua parte
na empresa? Tony passava horas, dias, analisando dados financeiros de cada
transação passada e presente, de cada fusão e aquisição, buscando algo fora do
comum, sem encontrar nada. Então mergulhou fundo nos processos operacionais das
diversas participações da empresa, novamente buscando... o quê? Algo estranho,
alguma pista que pudesse explicar o que estava acontecendo. Chegou a descobrir algumas
irregularidades, mas, quando as apresentou sutilmente como problemas para seus
sócios, elas foram corrigidas de imediato, ou explicadas de modo consistente
com os procedimentos operacionais que ele mesmo havia desenvolvido.
Apesar da crise econômica, os negócios iam bem. O próprio
Tonyera quem havia convencido seus sócios a manterem uma base sólida de ativos
realizáveis a curto prazo, e agora eles estavam comprando cautelosamente
propriedades e diversificando seus empreendimentos a preços acima dos valores
de liquidação. Atualmente, ele era o herói da empresa, mas isso não lhe trazia
paz de espírito. Qualquer trégua estava fadada a durar pouco, e cada sucesso
apenas aumentava as expectativas quanto ao seu desempenho. Era uma maneira
extenuante de viver, mas ele resistia às alternativas por considerá-las irresponsáveis.
Passava cada vez
menos tempo no escritório principal. De todo modo, as pessoas procuravam
evitá-lo porque sua paranoia crescente o tornava muito irritadiço, e as menores
falhas o tiravam do sério. Até seus sócios preferiam afastar-se, e quando as
luzes do seu escritório estavam apagadas todos suspiravam aliviados e
trabalhavam com mais afinco e de forma mais criativa e concentrada.
Mas era no seu
espaço privado, em sua folga momentânea, que seus medos vinham à tona,
aumentando a sensação de ser um alvo, objeto da atenção de algo ou de alguém
indesejável e importuno. Para piorar, suas dores de cabeça tinham voltado com
toda a intensidade. As enxaquecas eram geralmente precedidas por perda
temporária da visão, seguida de fala arrastada e dificuldade para completar as
frases. Hipersensível à luz e ao som, ele avisava sua assistente antes de se esgueirar
para a escuridão do apartamento. Armado de analgésicos, dormia até a sua cabeça
doer apenas quando ria ou a balançava. Convenceu-se de que o uísque ajudava na
recuperação, mas qualquer pretexto era motivo para servir-se de outro drinque.
Mas por que
agora? Após meses sem nenhuma dor, as crises voltaram a atormentá-lo quase que
a cada semana. Começou a prestar atenção no que consumia, preocupado com a
possibilidade de alguém estar tentando envenenar sua comida ou bebida.
Sentia-se cada vez mais cansado, e apesar de dormir com a ajuda de remédios
controla dos, continuava exausto. Por fim, marcou uma consulta com seu médico,
mas teve que desmarcá-la por causa de uma reunião convocada para sanar
problemas relacionados a uma aquisição importante que não estava indo conforme
o planejado. Remarcou a consulta para duas semanas depois.
Quando a
incerteza se sobrepõe à rotina, você começa a pensar no que realmente importa e
por quê. De modo geral, Tony não estava insatisfeito com sua vida. Era mais
bem-sucedido que a maioria, o que não era nada mal para uma criança adotiva que
o sistema havia deixado na mão e que, a partir de um certo momento, decidira
parar de lamentar-se. Tinha cometido erros e magoado pessoas, mas quem nunca
fez isso? Estava sozinho, mas a maior parte do tempo preferia que fosse assim.
Tinha uma mansão em West Hills, uma casa de praia em Depoe Bay, um apartamento
às margens do Willamette River, investimentos sólidos e a liberdade de fazer
quase tudo o que quisesse. Era um solitário, mas a maior parte do tempo
preferia ser assim. Alcançara quase todos os objetivos a que se propusera, e
agora, na casa dos 40, convivia com uma sensação sinistra de vazio e com
arrependimentos que o fustigavam insistentemente. Ele se apressava a enterrá-los
bem fundo, naquela câmara invisível que os seres humanos criam para se
protegerem de si mesmos. Claro que estava sozinho, mas a maior parte do
tempo...
Assim que
aterrissou em Portland vindo de Boston, Tony seguiu direto para o escritório
principal e começou uma discussão particularmente acalorada com dois de seus
sócios. Foi naquele momento que teve a ideia de criar uma lista das pessoas em
quem confiava. Não das pessoas nas quais dizia confiar, mas daquelas em quem
confiava de fato. Aquelas às quais poderia contar segredos, expor suas fragilidades
e dividir seus sonhos. Enclausurou-se em seu escritório secreto, apanhou uma
garrafa de uísque e começou a anotar e apagar nomes em um quadro branco. A
lista não era longa e incluía sócios, alguns de seus funcionários, duas ou três
pessoas de fora do trabalho e mais umas poucas que havia conhecido em suas
viagens. Mas, depois de uma hora de reflexão, esse número havia sido reduzido a
seis. Ele se recostou e balançou a cabeça. Aquilo se tornara um exercício vão.
As únicas pessoas em quem de fato confiava estavam todas mortas.
Seu pai e sua mãe
estavam no topo da lista. Racionalmente, ele sabia que boa parte das lembranças
que tinha deles era idealizada pelo tempo e pelo trauma. As características
negativas dos pais haviam sido apagadas pela saudade que sentia dos dois.
Guardava como um tesouro aquela fotografia desbotada, a última tirada antes de
um adolescente irresponsável perder o controle do carro e transformar glória em
escombros. Tony abriu o cofre e a pegou lá de dentro, agora protegida por uma
folha de papel laminado. Tentou alisar os vincos, como se seus pais pudessem de
alguma forma sentir a carícia. Seu pai pedira a um estranho que batesse a foto
da família em frente à já extinta sorveteria Farrell’s Ice Cream. Ele, um rapaz
desengonçado de 11 anos, atrás de seu irmão caçula, Jacob, então com 7. Os quatro
estavam rindo de algo, o rosto de sua mãe voltado para cima, com a alegria
estampada nos belos traços, seu pai com um sorriso sarcástico, que era o melhor
que ele podia fazer. Tony se lembrava com clareza do sorriso do pai. As poucas
emoções que aquele engenheiro externava tornavam-se muito significativas quando
se estampavam em seu rosto. Tony tentava se lembrar do que os fizera rir,
olhando longamente a foto como se ela pudesse revelar o segredo. Porém, por mais
que se esforçasse, a resposta estava fora do seu alcance, provocativa e
enlouquecedora.
O próximo nome da
lista era Madre Teresa, seguido imediatamente por Mahatma Gandhi e Martin
Luther King. Todos excepcionais, todos idealizados, todos muito humanos,
vulneráveis, maravilhosos e, agora, mortos. Ele pegou um bloquinho e anotou os
nomes, depois arrancou a folha solitária e ficou brincando com ela entre o polegar
e o indicador da mão direita. Por que havia escrito aqueles nomes? A lista
final tinha sido feita quase sem pensar, talvez como um reflexo de uma essência
muito profunda e, quem sabe, até real, talvez mesmo como um anseio. Ele ao
mesmo tempo detestava essa palavra e gostava dela. Parecia frágil à primeira
vista, mas tinha um poder de permanência, durando mais tempo que a maioria das
outras coisas que tinham ido e vindo em sua vida. Esses três personagens representavam,
juntamente com o último nome da lista, algo maior do que ele próprio, o
vestígio de uma canção que nunca fora cantada, mas que continuava a chamá-lo, a
possibilidade de alguém que ele poderia ter sido, um convite, um desejo.
O último nome era
o mais difícil e, ao mesmo tempo, o mais fácil: Jesus. Jesus, o presente de
Belém para o mundo, o carpinteiro que supostamente era Deus unindo-se à nossa
humanidade, que talvez não estivesse morto, segundo as crenças religiosas. Tony
sabia por que colocara Jesus na lista. O nome estava relacionado às lembranças mais
fortes que tinha de sua mãe. Ela adorava esse carpinteiro e tudo o que
estivesse ligado a ele. Seu pai também amava Jesus, é claro, mas não como sua
mãe. O último presente que ela havia lhe dado estava dentro do cofre, na
fundação do prédio que abrigava seu esconderijo, e era a coisa mais preciosa
que ele possuía.
Menos de dois
dias antes de ser arrancada de forma brutal de sua vida, ela fora
inexplicavelmente ao seu quarto. A lembrança estava gravada bem fundo na alma
de Tony. Ele tinha 11 anos, estava fazendo o dever de casa, quando ela surgiu,
recostada à porta, uma mulher franzina com um avental florido. Uma de suas
bochechas estava suja de farinha, e ela afastara a mecha de cabelo que se
soltara do nó que o prendia em cima. Foi por causa da farinha que Tony soube
que ela tinha chorado, as lágrimas deixando um rastro irregular ao longo do seu
rosto.
– Tudo bem, mãe?
O que foi? – perguntou ele, erguendo os olhos de seus livros.
– Ah – ela
exclamou, limpando o rosto com as costas das mãos cerradas –, não foi nada.
Você me conhece, às vezes começo a pensar nas coisas pelas quais me sinto tão
grata, como você e seu irmão, e fico toda emotiva. – Ela se deteve. – Não sei
por quê, meu amor, mas estava pensando em como você está crescendo... daqui a pouco será um adolescente e logo
entrará para a faculdade, depois se casará...Enquanto pensava nisso tudo, sabe
o que senti? – Ela se interrompeu novamente. – Senti alegria, como se meu
coração estivesse prestes a explodir no peito. Tony, eu agradeço tanto a Deus
por você. Então decidi fazer sua sobremesa preferida, o bolo de
amoras-silvestres e rolinhos de caramelo. Mas enquanto estava parada ali na
cozinha, olhando pela janela e para tudo o que nos foi dado, todos os presentes
que recebemos, e especialmente você e Jake, de repente quis lhe dar algo mais,
algo que fosse muito valioso para mim.
Foi então que
Tony notou sua mão cerrada. Aquela mulher que, mesmo àquela altura da vida, era
mais baixa do que ele, estava segurando algo que cabia dentro de seu pequeno
punho. A mãe estendeu a mão e a abriu devagar, deixando ver uma corrente suja
de farinha com uma cruz dourada na ponta, frágil e feminina.
– Tome – disse,
estendendo-a. – Quero que fique com isto. Sua avó me deu, como a mãe dela lhe
dera antes. Achei que um dia fosse entregá-la a uma filha, mas não acho que vai
ser possível. Não sei por quê, mas, enquanto pensava em você e rezava por nossa
família, senti que hoje era o dia certo para lhe dar esta corrente.
Sem saber bem o
que fazer, Tony abriu a mão para que a mãe depositasse nela a corrente
delicadamente entrelaçada, enfeitada com a pequena cruz de ouro.
– Um dia, quero
que você dê esta corrente para a mulher que amar, e quero que lhe diga de onde
veio – explicou ela enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto.
– Mas, mãe, você
mesma pode dar a ela.
– Não, Anthony,
estou convicta disso. Não entendo bem por quê, mas é você quem deve dá-la, não
eu. Não me entenda mal, eu pretendo estar presente, mas, como minha mãe me deu
esta corrente, eu agora a dou a você, para que você a passe adiante.
– Mas como vou
saber...
– Você saberá –
ela interrompeu. –Acredite, saberá sim! – Ela o envolveu em seus braços e o
abraçou longamente, sem se preocupar se iria sujá-lo de farinha. Ele também não
se importava. Sem compreender direito o sentido daquilo, Tony sabia que era importante.
– Abrace Jesus,
Anthony. Nada de mal poderá lhe acontecer se você se abraçar a Jesus. E pode
ter certeza de uma coisa... – disse ela, recuando para olhar dentro de seus
olhos. – Ele nunca deixará de abraçar você.
Dois dias depois,
ela partiu, destruída pela escolha egoísta de um garoto pouco mais velho do que
ele. A corrente continuava no cofre. Ele nunca a passara adiante. Será que ela
pressentia o que estava prestes a acontecer? Muitas vezes ele se perguntava se
teria sido uma premonição, algum alerta ou uma inspiração divina para que ele tivesse
uma lembrança dela. A perda da mãe havia destruído sua vida, conduzindo-a numa
direção que o tornara quem ele era hoje: um homem forte, duro, capaz de
suportar coisas que outros não conseguiam. Mas havia momentos, passageiros e
intangíveis, em que aquele anseio cheio de ternura se infiltrava por entre as
rochas da sua fachada e cantava para ele, ou pelo menos começava a cantar, já
que ele rapidamente bloqueava a melodia, afastando-a para longe.
Será que Jesus
continuava a abraçá-lo? Tony não sabia, mas achava que não. Ele não era muito
parecido com a mãe, mas, por causa dela, havia lido a Bíblia, assim como alguns
de seus livros favoritos, tentando encontrar nas páginas de Lewis, MacDonald,
Williams e Tolkien algum resquício de sua presença. Chegou até a fazer parte, por
um curto período, do grupo de jovens cristãos da escola secundária, onde tentou
aprender mais sobre Jesus, porém o sistema de adoção em que ele e seu irmão
foram parar os obrigava a trocar de lar e de escola a todo momento. Quando dizer
adeus às pessoas que você acabou de conhecer é só uma questão de tempo, entrar
para clubes e sociedades se torna doloroso. Ele sentia que Jesus tinha simples mente
lhe dado adeus, como todos os outros.
Então, o fato de
ter mantido Jesus na lista era um tanto surpreendente. Quase não pensava mais
nele. Na faculdade, havia retomado brevemente sua busca por Jesus, mas, depois
de um semestre de debates e estudos, o havia relegado à lista de grandes
professores mortos.
Mesmo assim,
entendia por que sua mãe tinha tamanha paixão por ele. Como não gostar de
Jesus? Um homem másculo, mas doce com as crianças; bondoso com aqueles que a
religião e a cultura julgavam inaceitáveis; cheio de uma compaixão contagiante;
capaz de desafiar o sistema vigente e, ainda assim, amar os próprios inimigos. Ele
era tudo o que Tony às vezes desejava ser, mas sabia que não era. Talvez Jesus
fosse um exemplo daquele tipo de vida dedicada a algo maior do que você mesmo,
mas era tarde demais para mudar. Quanto mais Tony envelhecia, mais a ideia de
uma transformação lhe parecia distante.
E era toda essa
coisa de Deus que ele não conseguia entender, especialmente no que dizia
respeito a Jesus. Fazia tempo que Tony havia decidido que, se existisse um
Deus, ele, ela, ou seja lá o que fosse, era algo ou alguém terrível e maléfico,
caprichoso e indigno de confiança, na melhor das hipóteses alguma espécie de
matéria escura, fria, impessoal e insensível, e, na pior delas, um monstro que
sentia prazer em esmagar o coração das crianças.
– Tudo não passa
de ilusão – murmurou ele enquanto amassava o papel e o atirava, indignado, na
lata de lixo do outro lado da sala. Não se podia confiar em pessoas vivas.
Pegando uma nova garrafa de uísque, ele se serviu de uma dose tripla e
voltou-se em direção ao computador, tornando a ligá-lo.
Abriu
seu testamento oficial e passou a hora seguinte expressando sua desconfiança e
antipatia ao realizar uma revisão pesada do conteúdo e imprimir uma nova cópia,
que assinou, datou e guardou junto com a antiga numa pilha de outras versões já
no cofre, acionando e reiniciando os alarmes e apagando as luzes da mesa. Enquanto
ficava sentado no escuro, pensando na vida e em quem poderia estar seguindo-o,
não sabia que estava bebendo seu último uísque.
REFERÊNCIAS:
YOUNG, WILLIAN P. A Travessia. São Paulo: Arqueiro, 2012. P. 11-29
Literatura Estrangeira
Romance
Autor: Willian P. Young
Editora: Arqueiro
Acabamento: Brochura
Número de páginas: 240
Editora: Arqueiro
Acabamento: Brochura
Número de páginas: 240
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